as almas, os pássaros

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quarta-feira, 20 de setembro de 2023



lamúria
nome feminino
lamentação interminável e importuna; choradeira; queixume
(Do lat. Lemurìa, «festas em honra dos lémures») – espíritos, fantasmas
fonte: Infopedia

Na verdade a Lemurìa era um dos Festivais dos Mortos dos Romanos, mas estes mortos, os lémures, eram muito aborrecidos, pois se não fossem pranteados, tornavam-se incómodos. Creio que estes mortos eram os espíritos dos lamuriadores.

Há os que sofrem e calam e se tornam mais fortes, há os que sofrem e lutam e ultrapassam a dor, há os que sofrem e passam a vida a lamuriar-se. São os lamuriadores. Esses vivem em constante sofrimento e comiseração por si próprios. Os lamuriadores têm comportamentos facilmente identificáveis. Para começar, gostam de confraternizar com outros lamuriadores. E quando os lamuriadores se juntam, é sempre aos pares, até porque não há muitos. Dois lamuriadores só se lamuriam se não houver nenhum não-lamuriador entre eles, pois as suas lamúrias só não são ridículas para eles próprios e correm o risco, caso um não-lamuriador interfira nas suas lamúrias com um pouco de bom-senso, de serem deslamuriados definitivamente. Isso seria um enorme inconveniente, pois os lamuriadores vivem unica e exclusivamente para as suas lamúrias, não saberiam viver sem elas e correriam até perigo de vida, se fossem subitamente deslamuriados. Os lamuriadores aparentam ser pessoas normais até se encontrarem com outro lamuriador. Aí começam as lamúrias. Lamuriam tudo, as escolhas que fizeram na vida e de que tanto se arrependem, os empregos que têm e que os reprimem, a cidade onde vivem, que devia ser outra, os vizinhos impossíveis de aturar, os cônjuges que não os amam nem compreendem, os filhos que não queriam ter e tiveram, as virtudes escondidas que ninguém vê e que o "mundo", tal como é, não deixa que se desenvolvam, os pais que os não entendiam, o tempo que não têm... nós não podemos escutar estas conversas, mas podemos adivinhá-las, porque quando dois lamuriadores se lamuriam, as expressões deles mudam, trocam gestos e sussurros secretos e saem dessas conversas mais lamurientos do que nunca, prontos a matar quem quer que se aproxime deles com um sorriso no rosto. Odeiam sorrisos e não têm nenhum sentido de humor. Perdem todas as oportunidades de alegria e felicidade que o universo lhes oferece, só para poderem lamuriar-se disso mais tarde. Os únicos momentos de satisfação que sentem é durante as suas lamúrias com outro compreensivo lamuriador.

É por isso que, quando morrem, obrigam outros a lamuriar-se por eles. Já não podem lamuriar-se eles próprios. Vão para o inferno dos lamuriadores.


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

tenho fome e não como, tenho sede e não bebo, tenho sono e não durmo, tenho raiva e não mato, quero quebrar e não quebro, sou uni-verso e não falo, de mim tudo é feito e nada é, exposta, sou invisível, em mim tropeçam os assassinos, os gulosos e os ladrões, contra mim se quebram os ocos, as máscaras e as mentiras, sou canto e ângulo essenciais, entrada para o abismo de baixo e de cima, sustenho o nada que o tudo gerou e canto the battle of epping forest e selling england by the pound até ao multiverso.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Quando o homem brinca com o violoncelo, este quebra-se.


Um corpo pousado no colo do homem, violoncelo, espigão ligado à terra, voluta-céu, o homem precisa de um arco-alma para o tocar, para lhe ouvir a voz, a alma do violoncelo é de abeto, perfeita, perfeitamente posicionada, aguarda o movimento do corpo macio, vibração transmitida ao fundo da luz, as cordas enroladas em prata anseiam as crinas de cavalo do arco de pau-brasil adormecido, não pode tocar-lhe com os dedos, o homem, com os dedos pode apenas tocar-lhe no pescoço, a mão acaricia a voluta e cai, o corpo precisa do arco, o arco precisa da alma do homem para existir, o homem não consegue despertar o arco, que lhe pende da mão, inerte. Só, tão só, o homem agarra o violoncelo e chora, nú.

[publicado no #2 da Contra-Corrente com o pseudónimo Laura Miguéis Raposo]



Pintura de Wayne Roberts, Austrália

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Desaprendeu a espera - come o pão sem saborear o sol - corta até o sol do pão com uma faca afiada - o breve sol na côdea funde-se com os dentes - corre o risco de acordar.

Desaprendeu os laços - tecla sem saborear a vida - esmaga até a vida nas teclas - a leve vida nos dedos estala no peito - corre o risco de sentir.

Desaprendeu a liberdade - vai de um ponto ao outro sem ver o céu - apaga até o céu das árvores - o céu matinal nas árvores cria pássaros - corre o risco de levantar vôo.

Desaprendeu a verdade - endivida-se por mentiras perdendo o essencial - arranca até o essencial da alma
- o essencial particular da alma grita muito - corre o risco de sofrer.

Desaprendeu o amor - só existem personagem nos monitores - cegou até para o toque - do amor do toque real nascem lágrimas - corre o risco de mudar.

e agora tudo se vai: o pão sem côdea, as teclas e os monitores, as cidades e as ruas mortas, os carros velozes, os antibióticos e os anti-depressivos, o crédito e as mentiras, et cetera, et cetera, et cetera, et cetera, et cetera, et cetera...

no final sobra silêncio

algumas pedras


segunda-feira, 22 de agosto de 2011


Ânfora, vaso, cálice… O que quer que fosse, quebrou-se, em milhares de pequenos pedaços pontiagudos, como ínfimos diamantes distorcidos por forças inconcebíveis, mais o pó entre eles. Olho agora para as mãos vazias, espantada, sem saber como escorregou. Escorregou. Olho-os, como pequenas lágrimas desfeitas, e o pior nem é o pó entre eles, irrecuperável, é a água e a luz que continham. Perdidas. Ajoelho-me no chão e seguro pedaços do delicado invólucro na mão direita, enquanto com o dedo indicador da mão esquerda desenho pequenas serpentes no pó. Uma nuvem brilhante ergue-se do solo e desvanece-se no ar. A perda é tão imensa, tão infinitamente inalcançável pela mente, tão muda, que nada sinto. Ânfora, vaso ou cálice? Até a forma vai desaparecendo na memória e depois os cacos desfazem-se em pó, e mais pó e mais serpentes entre o pó e depois as serpentes tornam-se cada vez mais finas, como fios de seda e desaparecem, pois já nem o pó ali está. Ficam as mãos vazias. Olho-as de novo, tão pequenas, as minhas mãos, os dedos pontiagudos. Tão pequenas. O que posso segurar com elas? Olho em volta. Nada. Ergo-me e olho mais longe. Nada, nada, nada. Não há nada neste mundo que eu possa ou queira segurar. Só esta ideia, que não devia ter deixado cair… o quê? Olho agora para o mundo inteiro, vejo tudo, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, é enorme o mundo e tudo nele tão grande, para dentro e para fora, sem fim, fractal, fracturado. Não quero nada deste mundo.Só queria o que continha o... cálice? Escorregou. A perda é muda. Regresso então às minhas mãos, com uma agarro a outra e sorrio. Entre elas surge de novo água e luz. Mergulho inteira nas minhas mãos e crio um novo mundo. Fractal, intacto.

domingo, 24 de outubro de 2010

Começou por ser uma casa vazia. Portas e janelas sempre abertas. Chão e paredes de pedra. Tectos transparentes. Também a sua localização era importante. Não era uma casa fixa, circulava, ora rodeada de floresta, ora de nuvens, ora de estrelas. Era uma boa casa. Dormia no chão e nem sentia o frio da pedra. Era feliz. Amigos vinham e iam, como aves de arribação. Abraços, risos, conversas, algumas lágrimas. Era a melhor casa do mundo.
Até que um dia vieram aqueles que não partiram mais.
Começaram por pôr trancas nas portas e janelas e começaram a trazer coisas para dentro de casa. Depois, fixaram-na ao chão, com cabos de aço, para facilitarem a tarefa de acumulação e enchimento. Cobriram os tectos com placa sólida. Trouxeram raiva, amargura, frustração. E coisas, muitas coisas. Coisas sólidas, que ocupam tudo, de todos os tamanhos, côres e texturas, coisas grandes e coisas pequenas, bicudas e redondas, com e sem arestas, de formatos simples ou complexos. A paisagem desapareceu e a casa começou a encher-se do pó dos que não partiam e do envelhecer das coisas. Já nem havia espaço para as aves de arribação, que com tristeza, ainda pousavam nos beirais, de vez em quando, até que um dia deixaram de vir. A casa ficou cheia, muito cheia, e escura e triste. E a alma que vivia lá dentro, deixou de conseguir respirar e morreu, sem espaço e sem luz.


Box of Rejection, Pintura de Sytiva Sheehan, Estados Unidos

segunda-feira, 20 de setembro de 2010



Sob a pele o barulho era ensurdecedor.
Sobre a pele
vestia apenas uma camisa curta de seda prateada, os cabelos lisos e soltos, ainda húmidos do banho. Deitou-se sobre a cama de madeiras exóticas, agora proibidas. Um leve aroma a jasmim azul evolava dos lençóis brancos de linho acabados de lavar. Muito devagar, como se cada osso do seu corpo lhe doesse, enrolou-se em posição fetal. Fechou os olhos. Lentamente, o dia expirou, a luz agoniando suavemente e o silêncio e a escuridão foram-se instalando, as formas das coisas vivas e mortas a desfazerem-se como borrões de tinta escura na água nova da noite. Sob as suas pálpebras fechadas, as sombras luminosas deram lugar às sombras cinzentas e depois sobraram apenas rolos e chamas de luz de várias côres, que dançaram dentro dos seus olhos, com o ritmo do bater de um coração, até que, num rápido piscar de olhos, os eliminou. Lá fora, o vento parou e as aves calaram-se. Os insectos pousaram quietos e assustados. As lagartixas refugiaram-se nos buracos das pedras.
O silêncio tornou-se absoluto.
Sobrou apenas o marulhar rouco e incomodativo da sua própria respiração, até que este marulhar incessante, como a voz de um mar esquecido e absurdo, a enfureceu. Emitiu um último breve soluço e
parou de respirar.




quando as raízes da luz se enterrarem fundo na terra húmida esqueço-te: os cordões fazem estremecer e abrir toda a floresta da alma.
és a semente perdida que me obceca quando mergulho na escuridão, o peito e o colo em chamas de fome à tua procura.
quando as raízes da luz se enterrarem fundo na minha terra esqueço-te, a terra desfaz-se na luz e a eternidade morreu.
quando regressar, já não serei tua.



domingo, 20 de junho de 2010

Ânfora, vaso, cálice… O que quer que fosse, quebrou-se, em milhares de pequenos pedaços pontiagudos, como ínfimos diamantes distorcidos por forças inconcebíveis, mais o pó entre eles. Olho agora para as mãos vazias, espantada, sem saber como escorregou. Escorregou. Olho-os, como pequenas lágrimas desfeitas, e o pior nem é o pó entre eles, irrecuperável, é a água e a luz que continham. Perdidas. Ajoelho-me no chão e seguro pedaços do delicado invólucro na mão direita, enquanto com o dedo indicador da mão esquerda desenho pequenas serpentes no pó. Uma nuvem brilhante ergue-se do solo e desvanece-se no ar. A perda é tão imensa, tão infinitamente inalcançável pela mente, tão muda, que nada sinto. Ânfora, vaso ou cálice? Até a forma vai desaparecendo na memória e depois os cacos desfazem-se em pó, e mais pó e mais serpentes entre o pó e depois as serpentes tornam-se cada vez mais finas, como fios de seda e desaparecem, pois já nem o pó ali está. Ficam as mãos vazias. Olho-as de novo, tão pequenas, as minhas mãos, os dedos pontiagudos. Tão pequenas. O que posso segurar com elas? Olho em volta. Nada. Ergo-me e olho mais longe. Nada, nada, nada. Não há nada neste mundo que eu possa ou queira segurar. Só esta ideia, que não devia ter deixado cair… o quê?
Olho agora para o mundo inteiro, vejo tudo, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, é enorme o mundo e tudo nele tão grande, para dentro e para fora, sem fim, fractal, fracturado. Não quero nada deste mundo.Só queria o que continha o... cálice? Escorregou. A perda é muda. Regresso então às minhas mãos, com uma agarro a outra e sorrio. Entre elas surge de novo água e luz. Mergulho inteira nas minhas mãos e crio um novo mundo. Fractal, intacto.

 

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A água dos teus olhos acendeu-me a urgência de descobrir o sabor do céu da tua boca, marfins que estremecem, súbitos veludos de sangue a pulsar, aos murros nas veias, com pressa, as mãos com pressa de incendiar as sedas dobradas, guardadas nas gavetas, os linhos, os bordados, resguardados, escondidos, perdidos, longe, tão perto e tão longe, as gavetas, os armários onde nos prendemos, as mãos com pressa do mergulho, carícias profundas, vincos, peles molhadas, da água, marco-te a pele molhada em sonho com o punhal das unhas pequenas, brancas, pergunto: será salgada ou doce, essa água?
será água?
a minha é salgada, algo doce, é água, água, água, a minha é água, verdadeira como a água, não falo dela, não falo dela contigo, porque é água, água, mágoa, água, com a força da água antiga, quebra ossos e pedras, as mãos presas em laços negros, nós e mais nós, nós? não, apenas nós, apertados, dos laços, a ansiedade das mãos, dos braços, do corpo todo, travada na pergunta, será água? será água a tua água?
será água?
se fosse água, estavas aqui, não é água. pouco me importa o que é, não é água.
se fosse água, desatavas-me os laços negros e eu marcava-te com a concha das minhas unhas, pequenas, rosadas e não precisava de me interrogar sobre o sabor do céu.
da tua boca.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Nem mesmo com a serpente a beber-me a raíz, maldade pura, nunca bati num cavalo. Visto o xaile negro da fadista, o punhal entre os seios, arrastando a saudade debaixo dos pés descalços, mas não bato nos cavalos. Nem quando eles escouceiam ou me atiram ao chão, mais depressa pego na chibatinha e a ferro no pescoço de outros cavaleiros. Nem com a mão, não bato nos cavalos, mas bato nos cavaleiros, com a chibatinha ou com o punhal enfiado entre os olhos, tanto faz, se é de dia ou de noite, a chibatinha para o dia, o punhal para a noite. Prefiro o punhal, a chibatinha é de uma arrogância. 
Cabra é o meu nome do meio, pensei eu hoje quando o homem me disse que os meus cigarros cheiravam bem e o olhei como se fosse lama. Se fosse ontem, ter-lhe-ia oferecido um diabinho preto, mas hoje não, cabra é o meu nome do meio, enquanto ele se enforcava com as cordas de uma guitarra. E agora vens tu, com a família, apareces-me aqui sem avisar e levas com a chibatinha ou com o punhal, talvez te atire uma panela à cabeça, o xaile negro a esvoaçar, sou portuguesa, podes ficar com elas, com a família e com a panela, não me batas à porta agora. Como se eu tivesse portas. 
Hoje reparei nas pedras, umas sobre as outras. As pedras são lentas, tão lentas que parecem mortas, mas quando se movem bebem sangue e trilham ossos. Depois surgem aqueles monumentos, naturais ou feitos pelo homem, o sangue seco entre elas, hoje reparei em todas as vidas que as pedras bebem. Também nunca bati nas pedras. As únicas pedras que para mover não matam são as esculpidas. As pedras gostam de ser amadas, mas só o artista vê nelas alguma coisa e elas deixam-se esculpir, passando fome. Não bato nas pedras, nem com punhal, chibatinha, nem mesmo com maço ou cinzel, mais depressa racho a cabeça dos capatazes, que gostam de lhes dar homens a comer ou cavalos ou bois.
Não devias vir agora, estou a mudar de pele, carrego o xaile da saudade espezinhada, o punhal entre os seios, a chibatinha entre as saias, um maço e um cinzel nos bolsos, a serpente bebe-me a raíz como as pedras outrora o sangue dos escravos, tenho este barco dentro de mim, o punhal é para o barco romper amarras.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fotografia de Johannes Hjorth
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa
É então que se vê passar o silêncio
Navegação antiquíssima e solene

Sophia de Mello Breyner 

 
Vi no silêncio / navegação antiquíssima e solene de Sophia um cisne adormecido embalado nos braços do rio da noite.


É bom quando os cisnes dormem. A minha filha-demónio, que tem de crescer rapidamente, só viu os cisnes adormecidos. Eu já os vi acordados, um branco e um preto, quebram-me o sono com pesadelos, um cisne branco e um cisne preto enrolados como um novelo em fúria a tentarem matar o pato, um pato tão esmagado pelos cisnes que não lhe vejo a cor.
No pesadelo o pato chamou-me, os patos gritam? choram? e fomos as duas de mãos dadas à procura dele no lago, a criança muito pequena, os olhos enormes, um vestido branco de algodão. Olhámos para o lago vazio à tona e foi quando vimos as três aves afundadas, bem no fundo do lago, e a criança-demónio atirou-se à água, tentava salvar as três aves, tentava salvar os cisnes daquele ódio impiedoso pelo pato, tentava salvar o pato dos cisnes e eu agarrei a criança pelos pés, perdeu a consciência assim que o seu pequeno corpo caiu na água, tentava salvar as três aves, duas a morrer de ódio e a outra a morrer do ódio das outras duas, as três aves num abraço violento e mortal, tanta tensão, tanta força nos pescoços dos cisnes, como serpentes em redor do corpo do pato e eu tentava salvar a criança da dor, não lhe largava os pés, precisava segurar-lhe a cabeça, agarrava-lhe os pés, não a queria perto das aves, já estavam mortas, as aves já estavam mortas.
Não devemos tentar salvar os que já estão mortos, segurava a criança-demónio contra o peito e dizia-lhe, não morras a tentar salvar os que já estão mortos.
É bom quando os cisnes dormem, minha filha-demónio. Não os acordes. Cresce, mas não acordes os cisnes adormecidos.


Pintura de Frankie Welk


quinta-feira, 3 de dezembro de 2009


madalena já não sabia o que fazer a tantos vidros partidos dentro dela, se pudesse, abriria a porta e mudava de casa, mas não podia. havia vidros por todo o lado, algo de realmente grande parecia ter-se estilhaçado dentro, os vidros estavam por todo o lado e eram tão reais que lhe perfuravam o corpo e ela via-os, mas mais ninguém os via. os piores eram os que saíam pela parte de trás do pescoço, mas também espreitavam pelos pulsos, pela nuca, atrás dos joelhos, por entre os dedos dos pés e das mãos, debaixo dos olhos... madalena não compreendia as pessoas, diziam-lhe: estás mais bonita, estás tão bonita. olhava para o espelho e via as pequenas rugas no canto exterior dos olhos a sangrar e aquelas enormes manchas escuras a alastrarem dos olhos para as faces e todos os vidros a romperem-lhe a pele. onde estava a vassoura e a pinça? precisava extirpar os vidros, varrê-los, fazer algo para se ver livre deles, mas era tão imenso o que se tinha estilhaçado, era todo o seu ser interior, tudo o que estava por dentro estava partido, só agora descobrira que o seu interior era todo feito de vidro, frágil, frágil, frágil, como era possível que os outros não vissem? estás tão bonita, insistiam eles, tens uns olhos tão brilhantes. não conseguia olhar para o espelho, ficava horrorizada, mas o pior eram as dores. as dores eram terríveis. respirar tornara-se uma agonia, pois sentia os vidros também nos pulmões, os movimentos, quaisquer que fossem, rasgavam-na um pouco mais, cada um, um pouco mais, era mais um vidro que se espetava nela, abrir a porta e sair, quero sair, mas não havia porta, apenas milhares de rasgões e tudo partido, e todas aquelas coisas a morrerem dentro dela, os órgãos, talvez, sentia as coisas a morrerem, como se dentro dela morresse uma árvore ou um pássaro, algo outrora vivo e grandioso, agora a apodrecer e todos tão cegos, cegos, talvez os estilhaços mais pequenos tivessem saltado para os olhos dos outros, de todos os outros, pelo menos não precisava esconder, mas aquelas coisas a morrerem todas dentro dela e os vidros espetados, finalmente descobriu a porta, arrancou com toda a força o bocado maior de vidro, o que saía do pescoço e espetou-o do lado esquerdo do peito. seguiu-se uma explosão de pó de vidro e acabou tudo.




sábado, 5 de setembro de 2009

Como um incêndio lavra na floresta, indiferente e cruel, assim lavra a raiva, como um incêndio ou a gangrena no corpo, surge repentinamente, surge sempre da Verdade, nunca da Mentira, a Mentira apenas perde, atrapalha, desorienta, a Verdade incendeia e diz: amputa, amputa, corta, arde, a dor do corte, do fogo, é ignorada, arde, arde, cura-te, larga essa coisa que te envenenou a vida, que te escureceu, que te fez escoar todo o teu ser para um pântano, só dói enquanto é gangrena, enquanto tem bicho, enquanto há seiva, mas a raiva seca a seiva, como um incêndio, já nada dói, agarra no machado e corta, arranca o que está podre, queima o que está doente, o que vale a pena foge, alguma coisa que vale a pena morre, paciência.








segunda-feira, 17 de agosto de 2009



A água dos teus olhos acendeu-me a urgência de descobrir o sabor do céu da tua boca, marfins que estremecem, súbitos veludos de sangue a pulsar, aos murros nas veias, com pressa, as mãos com pressa de incendiar as sedas dobradas, guardadas nas gavetas, os linhos, os bordados, resguardados, escondidos, perdidos, longe, tão perto e tão longe, as gavetas, os armários onde nos prendemos, as mãos com pressa do mergulho, carícias profundas, vincos, peles molhadas, da água, marco-te a pele molhada em sonho com o punhal das unhas pequenas, brancas, pergunto: será salgada ou doce, essa água?
será água?
a minha é salgada, algo doce, é água, água, água, a minha é água, verdadeira como a água, não falo dela, não falo dela contigo, porque é água, água, mágoa, água, com a força da água antiga, quebra ossos e pedras, as mãos presas em laços negros, nós e mais nós, nós? não, apenas nós, apertados, dos laços, a ansiedade das mãos, dos braços, do corpo todo, travada na pergunta, será água? será água a tua água?
será água?
se fosse água, estavas aqui, não é água. pouco me importa o que é, não é água.
se fosse água, desatavas-me os laços negros e eu marcava-te com a concha das minhas unhas, pequenas, rosadas e não precisava de me interrogar sobre o sabor do céu.
da tua boca.


Fonte da imagem: Gettyimages


domingo, 26 de julho de 2009


Nos traços quentes e perecíveis de um rosto a água deixa sulcos profundos e escuros, antiga perenidade gravada no vivo dos ossos malares, que os dedos frios tentam apagar. Não tem conserto, a água não pára, jorra de um abismo antigo, sem memória, vai desfazendo os ossos, a carne, a pele, vem de dentro, do fundo, do antes, corroendo o que respira, os ossos ardem? não sei, são duzentos e seis, a água é travada nos ombros, como se estes fossem dunas rebeldes, poderias consertar-me agora? dos ombros para cima, onde as dunas travaram a água, poderias consertar-me? não. o estrago é tão perene quanto a alma. por isso, com tudo o que sobrevive para lá das dunas danço, com tudo o que morre, canto.


quarta-feira, 15 de julho de 2009


Outrora as palavras corriam líquidas, de uma ilha para outra, de oceano em oceano, no dorso dos golfinhos, luziam no orvalho matinal dos mastros, de alga em alga abraçadas, em canto espraiado de coral para coral, saíam do meu peito como cavalos marinhos, altivas, espuma prateada e branca, pérolas libertas nas penas húmidas das gaivotas em vôos picados, conchas abertas, búzios secretos, sal e plancton, seios em seixos, brilho nocturno fértil na superfície das águas, tinham um destino, as palavras, o teu peito fortificado.

O mar morreu de assalto e as palavras secaram, fossilizadas, jazem num leito de pedra à espera do dilúvio de uma memória que singelamente lhes degole a sede.

terça-feira, 7 de julho de 2009


Amanhã vejo-te de novo. Se não for amanhã, em breve. Se não for em breve, um dia qualquer. Haverá mais um dia, pelo menos. Assim espero. Procuro-te. Em todos os carros, em todas as ruas, em todas as janelas, em todas as cidades por onde viajo. Procurei-te debaixo das pedras. Não. Não morreste. Não podes ter morrido. Mais uma vez. Só mais uma vez. Ausente, apenas. Ainda não procurei nos caixotes do lixo. Devia ter procurado nos caixotes do lixo. Olho para as árvores. Todas as folhas caem, e os frutos. Vê-se bem que não estás nas árvores. Tenho a noção vaga de que já passaram muitos dias e muitas noites. Não consigo dormir. Não te encontro. Os caixotes do lixo cheiram mal. Sei que não posso continuar à espera, nesta procura, nesta desorientação, preciso de dormir. Porque é que não estás aqui? Todos os carros, ruas, janelas, cidades, vazios. Debaixo das pedras, areia. Apenas um buraco negro à minha frente, um túnel estreito e circular. Entra nele. Não quero. Não quero entrar, mas não há outro caminho. Tenho medo das alturas, das pontes, das falésias carcomidas. Não há outro caminho. Entro. Sou levada por águas profundas e subterrâneas. Tento manter-me à tona de água. A raiva mantem-me acordada. Não quero morrer, não quero. Onde estás, grandessíssimo idiota? Esmurro a água com os punhos fechados, esmurro as paredes do túnel, duro como granito. O sangue mistura-se com a água. Cada vez que dou murros, afogo-me. Desisto de os dar. Concentro-me só em manter-me à superfície. Ao fundo do túnel não há luz. Mas as águas desaparecem e estou sentada na lama. Preciso de luz, preciso de dormir. A noite parece ser eterna. Sem sono. Levanta-te e anda. Estou cansada. Sinto a falta do sol. Reconheço que morreste. Não. Reconheço que nunca exististe. À minha frente surge agora o espaço e o tempo onde pareceste real. Há apenas ar contido dentro das delicadas paredes da minha imaginação, incham até ocuparem todo o espaço e tempo de uma alma, a minha, paredes essas que agora ruiram, silenciosamente, depois de lhes dar um pequeno corte com a unha do meu indicador direito. Ou terá sido o esquerdo? Não me recordo. Ruíram com uma simples unhada. O ar foi-se todo. Ouço um ruído estranho. Vem do meu peito. Fico quieta, a olhar para o que sobrou. Apesar do silêncio, apesar da quietude, parece que uma qualquer bomba passou por aqui. Nada está onde devia estar. Nada ficou inteiro. O túnel desapareceu. A destruição é total. Onde está a minha vida? Tantas cabeças de olhos abertos e ouvidos espetados a flutuar à minha volta. Onde estão os corpos? Onde estão as mãos, os abraços? Grito e não me ouvem. As cabeças estão zangadas comigo, não têm bocas, a certa altura deixo de as ver. Cansei-me de olhar para a destruição. Cansei-me de estar em pé. Primeiro o joelho esquerdo no chão, depois o direito. Tenho a certeza de que primeiro foi o esquerdo. Depois todo o peso do tronco apoiado sobre os pés cruzados, as mãos em forma de lua pousadas nas coxas, a cabeça pende um pouco para a frente e adormeço. Descanso. Não descanso, acho que me apago. Vêm os rios, outra vez. Deixo-os passar por mim, não me levam, os olhos fechados. Reabro-os quando a água se silencia. Esta é a tua nova casa. Esta? Por onde começar? Não vejo nada. Reconheço agora que não voltarei a ver-te. Reconheço que morreste. Reconheço que me enganei, nunca exististe. Não és. Amanhece. Está frio. À frente, o mar, a luz rosada nas minhas costas. Debaixo de mim, as pedras, grandes, pequenas. Doem-me os joelhos. Pego numa pedra pequena e macia, do tamanho da concha da minha mão esquerda. Ou será da direita? Não sei bem. Quero viver. Seguro a pedra com toda a força, é branca, aperto-a na mão. A brisa agita-me os cabelos, soltos, desalinhados, gotas de espuma aterram-me no rosto. O que sobrou das águas subterrâneas e dos rios nasce-me agora brevemente no olhar. O teu cadáver estava no caixote do lixo. Por entre as últimas gotas de água, amanhece outra vez, um sorriso rente ao mar. O pesadelo acabou. O mar existe.


Todas as madrugadas se afundam no vórtice de uma noite sem fim. Madrugadas, como flores de lótus azuis, impedidas de emergir pelo peso cruel de pesadelos alheios, incolores, que escorrem em sangue espesso dos teus cortes para as minhas feridas, raízes de metal irracionais, fractais de guilhotinas microscópicas cortando o ser. As mãos procuram desesperadamente sarar o que não tem cura. As guilhotinas que rasgam os dedos não perdoam, as palmas, folhas de nenúfares embriagadas, desflutuam no lodo desidratado, quase fóssil.

Ancorada a uma espera de refracção impossível, luz devorada pela própria sombra, pulsão de irreversibilidade, inexisto. Até que a única imperfeição da flor, rebelde e gelada, me liberte, sem som algum ou compaixão.

sábado, 4 de julho de 2009


A Rosa está sujeita às leis da eternidade.
Lectorium Rosicrucianum



Saiph(1) e Eltanin(2): alguns graus e milhares de anos luz de separação.

Tudo numa não-relação é tangencial. Mas o desejo de fusão de uma estrela com outra pode ser tão forte quanto o medo. Pode transformar-nos em Ícaros. Eltanin está desperta, Saiph dorme um sono profundo. Nasceram em galáxias distantes. Se acordasses, Saiph, ver-me-ias. Mesmo longe, saberias quem sou. Desperta para a tua eternidade, para que possas baptizar-me. Ou terei sido em vão.


(1) Kappa Orionis (constelação de Orion)
(2) Gamma Draconis (constelação de Draco)


folhas soltas

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